Criatividade na vida adulta: o que devemos aprender com as crianças?
Quando somos crianças, as nossas ideias têm vida própria e parecem não ter dono nem limites. Conforme os anos vão passando, criar novos mundos parece mais difícil.
O que muda quando se fala de criatividade na vida adulta? E o que os adultos podem aprender olhando para trás e conversando com as crianças que foram, para tornar sua rotina mais rica e inovadora?
A criatividade da criança
Gerar ideias, perspectivas, soluções e apreciações do mundo: é tudo isso o que a criatividade nos possibilita. E nascemos assim: a criatividade não é dom ou característica específica, mas uma habilidade que pode - e deve - ser estimulada e treinada.
O processo de aprendizado infantil exige bastante da criatividade, ao mesmo tempo em que ele vai se moldando e se adequando a determinadas regras a partir da observação do mundo. Para entendermos a criatividade infantil é importante termos consciência, portanto, dos tipos de pensamento que são desenvolvidos na infância e que podem levar a criança a despertar suas percepções do mundo.
O psicólogo Lev Vigotsky (1896-1934), que passou anos estudando as relações entre pensamento e linguagem, descreve que a formação da linguagem na infância acontece por meio de um processo de pensamentos encadeados. Segundo o pensador, "a estrutura da língua que uma pessoa fala influencia a maneira com que essa pessoa percebe o universo".
Ele afirmava que muito antes de desenvolver uma linguagem, a criança consegue resolver problemas práticos, usando instrumentos e meios para alcançar objetivos: o que chamamos de inteligência primária.
E, ainda, que o pensamento tipos básicos de divisões. Alguns deles são:
- Associativo: nesse tipo de pensamento, a criança enxerga um grupo de elementos tendo como referência um núcleo, ao qual vai associando outros elementos. Por exemplo: observa um quadrado e pode associá-lo a um retângulo ou triângulo, por causa dos vértices.
- Por coleção: aqui a criança já está buscando semelhanças e diferenças, buscando contrastes. As cores, por exemplo, exercem um importante papel de diferenciação.
- Em cadeia: a partir desse pensamento, a criança já não mais associa a um núcleo, mas a referências que a vão afastando do núcleo e permitindo escolhas. Por exemplo, se tem um quadrado amarelo em mãos e um círculo da mesma cor, consegue distinguir um outro círculo - esse azul - e entender suas conexões e desconexões.
- Pseudoconceito: o conceito é o pensamento que vai se solidificar na adolescência. Enquanto isso, na infância, o pseudoconceito é o pensamento intermediário entre o pensamento por complexos e o pensamento real. Assim, a comunicação entre adultos (ou crianças com capacidades cognitivas mais avançadas) e crianças tem um papel fundamental aqui.
- Difuso: aqui os pensamentos são formados com base na percepção de imagens concretas. São imagens que se conectam e que estão difusas, indeterminadas e que podem construir conexões de complexos ilimitados já que não têm "fim". O pensamento difuso caracteriza-se pela associação incessante.
Mas, se há o pensamento difuso e o pensamento concreto, nós precisamos dos dois.
Durante a infância, o pensamento difuso ou abstrato é essencial na construção de novas possibilidades, de descobertas, enfim, da criatividade. Mas, como se dá esse ato de pensar?
O pensamento difuso é aquele que nos permite desenvolver não um raciocínio lógico, concreto, com começo, meio e fim, mas aquele que nos faz refletir sobre aquilo que não está lá ao alcance das nossas mãos, olhos, olfato.
Ele está tão somente no campo da imaginação, nos permitindo criar o que não existe.
Ele serve, essencialmente, para nos fazer pensar em diferentes aspectos de uma situação, sem que estejamos baseados em tempo ou espaço. O pensamento difuso é o pensamento de livre associação, ideias que vêm à revelia, sem que você "controle" muito. Ele é intuitivo e permite mais prever do que ver, literalmente.
O pensamento concreto é o oposto do pensamento difuso - ele nos direciona como em uma dinâmica de erros e acertos, como um jogo de pinos. A lógica do pensamento concreto é a própria lógica. Imagine que você está tentando resolver um problema: seu cérebro vai buscar conexões entre as ideias para chegar a uma solução racional, arquitetada.
No fim das contas, ambos nos formam como seres sociais, mas a tendência é que ao longo do tempo o pensamento difuso vá perdendo espaço, e que o pensamento concreto vá engessando a nossa imaginação...
Criatividade na vida adulta: o que acontece quando crescemos?
Na vida adulta somos apresentados a mais e mais regras. Não que limites sejam prejudiciais à nossa evolução, mas a criatividade é um elemento da essência humana que precisa de espaço e liberdade.
Ao sermos apresentados a regras e ao passarmos a limitar determinadas condutas, estamos também limitando as possibilidades de resolução de problemas, e restringindo a criação de novos caminhos.
Segundo a Pedagoga Ana Carolina Dorigon, "cada indivíduo possui ciclos de ação ou modelos mentais, isto é, todos nós somos influenciados por crenças, valores e experiências que geram pensamentos, além de interpretações do mundo, que resultam em atitudes e comportamentos."
Passamos a dar mais e mais espaço ao pensamento concreto, como se estivéssemos escalando uma montanha, e menos voz ao pensamento difuso, que nos permitiria escalar, caminhar de cabeça pra baixo, voar, plantar bananeira - ou seja, que permitiria formas mais diferentes (e criativas) de resolver o mesmo problema.
De acordo com o educador e artista plástico Gandhy Piorsky, os adultos não sabem lidar com a criatividade porque são tirados muito cedo do mundo da ludicidade, em que as crianças recebem, desde pequenas, conteúdos racionalizados. Assim, segundo ele, "na vida adulta não sabemos mais transitar pela beleza, pela alegria, pela liberdade de olhar a realidade por outras lógicas."
Na vida adulta, como recuperar o estímulo à criatividade?
Eureka: adultos, cultivem a ociosidade
Ah, o ócio...essa palavrinha que parece ser contraproducente para adultos tão atarefados pode ser, muitas vezes, a porta de entrada para um mundo de soluções (e muita inspiração). O momento em que adultos se permitem ter contato com o ócio é aquele em que o pensamento difuso pode tomar conta e oferecer soluções criativas à consciência.
O sociólogo Domenico De Masi, em seu famoso livro-entrevista O ócio criativo fala que estamos em um mundo que cada vez mais dá espaço para atividades criativas, delegando às máquinas o trabalho mecânico e restando aos seres humanos a tarefa de criar novos caminhos e soluções.
Você aproveita essas possibilidades do mundo contemporâneo para estimular a sua criatividade ou está sempre no modo "preocupação a mil"?
Segundo o autor, "a principal característica da atividade criativa é que ela praticamente não se distingue do jogo e do aprendizado (...) quando estudo, trabalho e jogo coincidem estamos diante daquela síntese exaltante que eu chamo de 'ócio criativo'." Logo, como uma criança: imagine, brinque e execute!
Um empurrãozinho na hora de criar e executar
Durante a infância nossa criatividade está fervilhando. Como vimos, com o tempo e as investidas de regras, esse poder criativo acaba "se perdendo" e o que acontece é que outras áreas ficam, quando não estimuladas, à deriva.
É o que acontece com as funções executivas. Assim como a criatividade, essas habilidades cognitivas que fazem as pessoas organizarem seus processos de aprendizagem e interação com o mundo são muito importantes para colocar as ideias em prática.
Se, como adultos devemos, aprender a estimular o pensamento difuso e praticar o ócio dando espaço a criatividade, devemos também aproveitar para estimular as funções executivas - que devem ser estimuladas desde a infância junto ao processo de criar. Essas funções executivas são:
Organização - é a habilidade de gestão de tempo e recursos. Fazer listas, mapas, ter marcadores, tudo é importante para estimular a habilidade.
Priorização - significa selecionar e categorizar, dando valor às tarefas.
Reflexão - fazer perguntas, fazer análises, fazer comparações. Tudo está no campo da habilidade reflexiva.
Motivação - A motivação tem bases sólidas na autonomia e na autoeficácia. Se você acredita em si mesmo, essa habilidade naturalmente se fortifica.
Regulação Emocional - entenda e nomeie as emoções. A regulação emocional permite que reações que você tem não sejam um impeditivo, mas uma mola propulsora para sua criatividade.
Todas essas funções podem ser estimuladas na infância e consolidadas na vida adulta. Crianças que são estimuladas criativamente, sobretudo nas funções executivas citadas acima, tornam-se adultos que alcançam soluções inovadoras com mais facilidade. Se você não teve esse estímulo na sua primeira infância, nunca é tarde para começar. Que tal soltar o seu lado criativo agora?
Aquela solução para o problema no trabalho ou no relacionamento que você, como adulto, está buscando tão racionalmente, e com tanto afinco pode estar bem perto, à distância de um breve momento de relaxamento e com a dose certa de poder de execução.
Converse com sua criança interna: ela sempre desenha o caminho que você nem sabia que existia, mas que é o ideal para você começar a praticar essa jornada rumo a criatividade. E se quiser treinar, não esqueça, estamos aqui para ajudar você.